sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As duas faces da lembrança



A parte que bem me cabe neste momento é um coração de pedra, pois sendo pedra é rude, é sólido e talvez nada sinta. Não quero mais sentir a saudade que ela me traz, que perturba minha mente toda vez que fico um único segundo ociosa, por causa da maldita lembrança.
Sim, é por causa dela, a maldita lembrança, que vem a todo instante e causa todo o mal que sinto, que rompe o meu ser e rasga minhas forças, toda vez que lembro, que me pego lembrando, a cada segundo que passa.
Se lembro apenas no terceiro segundo fico um pouco feliz, acho que já dei um grande passo, fiquei ao menos os dois segundos iniciais sem pensar nela, na maldita lembrança. Meu corpo parece engraçado, bobo, o meu corpo é muito bobo, como pode? Minhas mãos suam, meu estômago contrai, meus pés deslizam.
Alguns chamam isso de ansiedade, e dizem mais, toda ansiedade tem uma causa, por que estais assim? Assim como? Triste, com semblante baixo. Como seria um semblante alto? Está apaixonada? Não, claro que não! Pois parece, isso parece ser amor.
Eu tenho o direito que ter o tal semblante baixo sem está sofrendo por amor, mas dessa vez não foi o caso, eu sempre disse, nunca amarei, porque amor é indefinido, não existe, e não é que por duas vezes acho que ele me pegou?! Eu disse: Acho!
A maldita lembrança é maldita porque me traz os momentos de risos que não tenho mais, porque me traz o cheiro que não sinto mais, porque me traz a tranquilidade que não tenho mais, antes ela era uma lembrança boa, hoje ela é maldita.
Se os meus olhos não vissem talvez não sofreria tanto, todo dia vejo a maldita lembrança, tenho sempre duas vontades: ignorá-la de todas as formas ou me jogar sem medo e tentar de novo. O choro sobe até a garganta, ponho a mão na boca, e coloco no bolso, viro no corredor à esquerda e jogo na primeira lixeira.
Durante o auge da minha angústia senti os piores sentimentos que um humano poderia sentir, as piores vontades que eu poderia ter, uma alternância de ódio e amor, de afeto e repúdio, de compreensão e incerteza, uma vontade danada de desistir...
E quando me deparei com o lado bom da lembrança vinheram à tona todos os momentos que jamais poderei esquecer, como era bom iniciar o dia e ouvir aquele bom dia, não era apenas duas palavras de cumprimentos, era o bom dia que me erguia para acordar.
E minhas mãos suavam, mas suavam de alegria, porque logo veria a lembrança, e interagia com ela, e sorria, e brincava, e comíamos lado a lado todos os dias, ainda lembro quando ela mexia na minha comida, era engraçado, ela tinha mania de mexer na minha comida.
Eu sempre detestei cebola, tem gosto ruim e cheiro ruim, mas a lembrança adorava cebola, e ainda gosta, porque ainda vive, mas vive sem mim, sem está ao meu lado, sem poder dizer pra mim: deixa que hoje eu lavo os pratos.
A parte boa depois do almoço era a hora de escovar os dentes, tudo era muito lindo, o creme dental era mais macio, o gosto de menta tinha gosto de quero mais, era tudo muito rápido porque o labutar do dia a dia logo chamava e nos últimos minutos desse momento eu sentia o breve gosto do beijo roubado e atrapalhado, nem mesmo sentia já tinha acabado e a lembrança já não estava mais lá.
O nosso romance foi contado no calendário e medido pelo relógio, todos os nossos momentos foram cronometrados, cada minuto tinha um valor incomum, e eu sempre dizia assim: Amor, faltam tantos minutos...
Imagino o momento em que a noite chegava, nessa hora o relógio corria sem parar, e quando me deparava, já estava na hora de voltar, mas nesse momento a vontade era de ficar e nunca mais sair dali, do nosso cantinho, como sempre chamávamos.
No nosso cantinho ouvíamos as melhores músicas, hoje meus ouvidos choram quando as ouço, desejo não ouvir e desejo me livrar, são nessas horas que a lembrança torna-se maldita, porque fere, e perfura sem consideração alguma.
No nosso cantinho também líamos, nos deslumbrávamos com a beleza da literatura, da poesia a prosa estávamos sempre ali, eu e a lembrança, e também escrevíamos, muito, cada papel em branco ganhava um verso, até o caderninho personalizado que eu a dei de presente e disse assim: Amor, muitos caderninhos virão para registrarmos aqui, acho que escrevi até a décima página.
Quando tudo foi ficando crítico, eu voltei a desenhar, eu desenhava na adolescência, as páginas em branco em lugar dos versos viravam desenhos e eu sempre dizia: Amor, eu fiz um desenho, a lembrança dizia: Eu quero ver, vou aí pegar, e dizia, que lindo!
Nossa comidinha da noite era uma graça, fazíamos tudo no forno micro-ondas, demorava e a lembrança dizia: Amor, eu tô com fome! E eu calmamente dizia: Calma, amor, já fica pronto! E tudo que fazíamos era simples e com amor, comida enlatada, arroz de micro-ondas, salada ralada e suco de pacote. A lembrança tomava suco de garrafa.
Mas não tinha jantar sem antes providenciarmos tudo isso, Teresina era pequena para tantas ruas e avenidas que eu cruzava para está com a lembrança, no entardecer tudo ficava mais difícil, o trânsito era mais intenso, as pessoas saiam de seus trabalhos e seguiam juntas em corrida para quem chegava primeiro.
Eu passava pelo balão confuso da BR 343 com a Avenida do Expedicionários onde os carros não sabem se vão, se ficam, se entram, se param no meio, era uma confusão e ainda hoje é, mas para o amor isso não era nada, avançava e seguia adiante.
Lembro quando eu passava pela Ladeira do Uruguai, as pessoas caminham ali com frequência em busca da melhor forma, eu pensava, poderia está aqui caminhando também, mas meu amor me espera e logo atravessava ruas e mais ruas, até chegar ao supermercado para comprar comida de micro-ondas.
Tinha dia que a lembrança não queria comer enlatado e saíamos em busca do arrumadinho, a cidade é cheia de pontos de doces senhoras servindo arrumadinho, é uma forma de ganhar o pão de todo dia que alguns teresinenses honestamente trabalham.
Eu sempre gostava de inovar, um dia fui com a lembrança ao cinema de Teresina, outro dia fui com a lembrança comer caldinho de feijão preto lá no Jockey, só que sempre terminava mal, a lembrança não queria sair de sua zona, e por mais que eu tentasse, todo novo lugar que eu visitava era na zona sudeste de Teresina.
Para a lembrança a zona sudeste tinha de tudo, um centro chamado Dirceu, um teatro, farmácias, lojas, bares, restaurantes, rio, era ali que a lembrança gostava de ficar, e eu sem escolha só fazia acatar.
Minha vida tinha uma única ponte, a do Tancredo Neves, essa ponte era quem ligava eu e a lembrança, quando voltava por ela a noite sentia um frio estranho percorrer no cangote, era uma sensação ruim, uma sensação de que logo tudo isso teria um fim, tão próximo quanto eu imaginava.
Era sexta- feira à noite, saiu disparada na minha frente, não tive tempo de reação, eu até tentei, mas não consegui alcançar, eu liguei, chamou, chamou, atendeu, e então falou com a maior frieza que alguém poderia falar: Acabou!
Eu acredito que tudo o que eu poderia fazer para que a lembrança estivesse aqui, eu fiz, às vezes penso ter me dedicado pouco, porém nem com todo meu esforço pude tê-la comigo, e o que me resta é continuar vivendo com as duas faces da boa e maldita lembrança, e almejo ainda completar o quarto segundo para lembrar que um dia eu passei por tudo isso.

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